Menos estrangeira no lugar que no momento

Giovanna Mont'Mor
3 min readJun 3, 2021

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Califórnia (2015), Marina Person

A acesa lembrança de quando assisti a As Vantagens de Ser Invisível (2012), filme do diretor e escritor Stephen Chbosky, ressurgiu. Tinha 14 anos, e naquela época compartilhava playlists no YouTube com os amigos. Minha amiga Rafaela comprou o livro que teve a adaptação para o cinema, e me prometendo uma infinidade de boas referências musicais, emprestou a mim — este mesmo exemplar que miro à procura enquanto escrevo (caso leia, desculpe ainda não ter devolvido, Rafa).

O filme me impactou assim como qualquer obra adolescente que viesse carregada de boas e novas músicas para o meu repertório. É um filme de trilha sonora, daqueles que o que escapa através dos anos é a lembrança da Emma Watson de braços abertos na carroceria da caminhonete atravessando um túnel enquanto Heroes toca. Sinto que foi este o filme que me apresentou David Bowie como merecia, algo que seria necessário para (sobre)viver (a)os anos seguintes.

Acabo de assistir a Califórnia (2015), filme de Marina Person. Na São Paulo da década de 1980, num Brasil à beira do processo de redemocratização, época também que a AIDS vitimava sobejamente, Marina faz cintilar a adolescência de Teca (Stela) de forma quase a ensaiar uma autobiografia — começando pela sua inquietante semelhança física com a atriz Clara Gallo.

À espera dos 17 anos para enfim poder viajar para a Califórnia e visitar seu tio Carlos (Caio Blat), um jornalista musical, com quem Teca troca correspondências com desabafos inconfidenciais até à sua mãe, recebe fitas k-7 com novidades musicais, t-shirts, fotografias, além de escutar histórias sobre um mundo no qual ela sonha viver.

Entretanto, na iminência de sua viagem, seu sonho é frustrado com o regresso de seu tio, doente, ao Brasil, cuja chegada se mistura às descobertas da adolescência, aos conflitos com o pai conservador (Paulo Miklos) e à possibilidade de perda da virgindade.

Os personagens por vezes aparecem como antagonistas: o pai conservador e o tio liberal; o cara cool do colégio e o esquisitão; a amiga desinibida e a outra mais tímida. E Teca, transitando por entre eles numa descoberta de si mesma. Há as festas, a ida à praia, a loja de discos, os carros, a casa e o santuário-quarto. É no quarto que ela se refugia nos momentos de descoberta — do luto, do amor, da sexualidade — em meio aos discos, fotos, pôsteres — aquilo que há de mais íntimo para ela.

Todos os amigos que compartilharam comigo seus anos adolescentes conheceram As Vantagens de Ser Invisível, mas nunca descobriram o filme de Marina Person, no qual ouço em sua trilha às músicas de meus pais e que também são minhas. Encaro uma São Paulo tão próxima na distância, embora antiga.

Relembro Paulo Emílio Sales Gomes, que dizia que o pior filme brasileiro (coisa que Califórnia está longe de ser) nos ensina mais sobre nós do que o melhor filme estrangeiro, e penso que recuperar Califórnia como um filme de formação brasileiro, me fez sentir menos estrangeira no lugar do que no tempo. Obrigada, Marina.

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Giovanna Mont'Mor

Estudante de Comunicação, instrutora de Yoga, interessada em Cinema, Literatura, Política e Cultura Visual.